No conto Amor, de Clarice Lispector, a personagem Ana
leva uma vida aparentemente normal. Mas tudo muda quando ela vê um cego
num ponto de bonde. Esse olhar profundo no outro provoca uma crise moral
e existencial na personagem. “O cego ficara atrás para sempre, mas o
mal já estava feito”. Para Ana, a visão do cego “mergulhara o mundo em
escura sofreguidão”, e ela “caíra numa bondade extremamente dolorosa.”
Como será a vida das pessoas após a pandemia, que certamente deixará uma grande parte do mundo em escura sofreguidão? Será que, à semelhança da personagem de Clarice, vamos “cair numa bondade extremamente dolorosa”? Seremos mais solidários?
Não
consigo prever nem sequer intuir o futuro. Como escritor de ficção,
estou mais preocupado com o passado e sua repercussão no presente. Mas
arrisco dizer que o sofrimento da imensa maioria dos brasileiros e a
morte de milhares de pessoas podem sensibilizar os que eram indiferentes à dor dos outros.
Também
nesse sentido o conto de Clarice Lispector é notável. Se muita gente
pensar na dor dos mais desvalidos num mundo mergulhado em escura
sofreguidão, é provável que certas sociedades sejam mais humanizadas.
Refiro-me a nações com democracia estável e instituições sólidas, cujos
cidadãos – dos mais pobres aos mais ricos - são protegidos pelo Estado
do bem-estar social. Nações em que as Forças Armadas apenas cumprem seu
papel institucional e jamais se intrometem na vida política, muito menos
para tutelar, com alianças cúmplices, governos autoritários, sem
qualquer compromisso com a democracia.
Muitas
pessoas vão refletir sobre nossa dupla miséria: social e política. Mas a
grande questão refere-se ao papel do Estado, responsável por políticas públicas.
Os biomas e suas populações originárias serão protegidos e respeitados?
A obscena, brutal desigualdade social vai diminuir? Vão diminuir a
violência e a impostura política? Nossas elites – política, econômica,
institucional - vão adquirir consciência de que é urgente investir
seriamente no saneamento básico, na educação e saúde públicas de qualidade?
Manter o SUS é fundamental, mas é bom lembrar: antes da pandemia, os brasileiros mais humildes eram mal atendidos, e milhares morriam
(e ainda morrem) por falta de atendimento. É verdade que faltam
recursos e capacitação ao SUS, mas é também verdade que alguns estados -
como o Amazonas e o Rio, entre outros – são mal administrados e
saqueados há décadas.
Talvez essas perguntas e
observações sejam inúteis enquanto durar o atual governo, que alimenta
perversamente o atual estado catastrófico. Não encontro qualquer razão
para ser otimista, se é que fui algum dia. E a esperança, para não ser
uma mera palavrinha de consolo, só fará sentido se houver uma forte
mobilização de todos os brasileiros que anseiam por uma verdadeira democracia para este país.
Espero
que os jovens usem toda sua energia – física, moral e intelectual –
para, nos limites da democracia e do Estado de direito, fazer mudanças positivas e duradouras. Só assim poderemos emergir desse “mundo em escura sofreguidão.”
Fonte: www.uai.com.br
Imagem de capa: foto: Divulgação
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