Com quase duas dúzias de livros publicados, um prêmio São Paulo de Literatura e um conto selecionada pela revista inglesa “Granta”
que reuniu os melhores escritores jovens brasileiros, Lísias foi
censurado. O autor teve uma obra impedida de ser lida em uma escola
particular do ABC Paulista.
Os desdobramentos dessa censura vão
desde a demissão de um professor que tinha grande aceitação pelos alunos
até a confissão de que o livro foi impedido sem sequer ser lido. Tudo
isso intercalado de cenas tragicômicas. Em entrevista ao Yahoo Notícias
ele conta mais sobre essa história e sobre como tem relacionado sua
produção literária com o Brasil de 2019.
Yahoo Notícias: Como é ser um escritor no Brasil de 2019? A realidade supera a ficção?
Ricardo Lísias:
Pois é. É uma pergunta que tem surgido um pouco por aí agora. Muita
gente tem dito que a realidade se tornou inimaginável. E talvez isso
tenha algum sentido. Chegamos em uma situação em que não conseguimos
acreditar que isso chegaria. Vivi algumas situações no ano passado em
que as pessoas me falavam... ‘Não... Isso não vai acontecer’... ‘Não
chegaríamos a esse ponto’. A imaginação não alcançou. Ninguém conseguiu
prever isso. Mesmo a não ficção. Estudos e análises apontavam que não
chegaríamos a esse ponto. A gente já chegou e está ultrapassando. A vida
ficou muito difícil. No campo específico da literatura... Nos eventos
que eu vou percebo que já existe autores com certo medo. Existe uma
autocensura. Existe também um estrangulamento financeiro. Eventos
pararam de receber verbas e as coisas passaram a ficar burocraticamente
difíceis de propósito.
Yahoo Notícias: Como o senhor define a relação entre literatura e política? Ela tem mudado com o tempo?
Ricardo Lísias: Sim.
Até porque a própria questão política muda. As duas instâncias mudam.
Tanto a política como a literatura. Sempre foi uma relação muito
conflituosa. Muito problemática. Eu acho que a literatura está inserida
na vida social. O livro ocupa um determinado espaço. Foi o que eu quis
fazer com esse livro com o nome do Eduardo Cunha. Eu queria fazer um ato
de provocação política. Eu acho que os livros podem se inserir em uma
determinada situação social e essa situação social também se faz
presente no livro. Se a consequência dessa sua pergunta fosse se a
literatura deu conta dessa realidade? Da situação política atual? Aí eu
acho mais problemático. Eu tenho uma tese que é difícil de defender.
Estou escrevendo sobre isso nesse momento. Eu acredito que sociedades
que produziram certo tipo de literatura conseguem produzir acordos que
impedem que a extrema direita não chegue ao poder. Notei que sociedades
que já aboliram ou que nem se preocupam tanto com o gênero literário.
Que explodiram a diferença entre gêneros conseguem apresentar um pouco
de resistência como no caso da literatura francesa. A gente ainda eu
acho que ainda não. Talvez atualmente a gente esteja chegando em um
ponto de reação. Não estamos nesse grupo que tinha também uma arte muito
pouco presa a lastros e fronteiras. Você repara que durante a nossa
eleição as fronteiras foram mantidas. Alguém de centro jamais apoiaria
alguém de uma esquerda mais radical. Ninguém quis fazer uma frente ampla
de defesa contra o candidato de extrema direita e aí deu no que deu.
Yahoo Notícias: O senhor teve recentemente o livro “Céu dos Suicidas” (Alfaguara, 2012) censurado em uma escola. Conte sobre esse caso?
Ricardo Lísias: É
um caso muito surpreendente. Ao contrário do que as pessoas pensam o
“Céu dos Suicidas” é meu livro mais vendido. E isso acontece porque ele é
adotado em sala de aula no ensino de jovens entre 15 e 18 anos. E essa
história é muito maluca. Um professor tentou adotar o livro no terceiro
ano do ensino médio de uma escola particular do Sistema S. É uma escola
do Sesi de Santo André. Algo normal. O livro já foi adotado por outras
escolas. Até pelo próprio Sistema S em Santo André quando eu estive lá
em 2014. Esse professor colocou o livro em uma listagem dos livros que
seria passado para os alunos. Quando a lista chegou na coordenação
pedagógica, a coordenadora chegou nesse professor e disse que não
permitiria aquele livro. Ele perguntou o motivo e ela não deu
explicações muito claras. Pelo que eu entendi esse era um dos conflitos
desse professor com a escola. Passaram a aparecer outros conflitos e ele
foi demitido um mês depois. Eu fiquei sabendo meses depois quando
alguém me marcou no Twitter falando sobre o caso. Eu fiquei interessado
em saber do que se tratava. Quando conheci a história eu percebi quanto
tudo aquilo era nonsense. Os alunos da escola quando viram que eu estava
interessado no assunto começaram a me mandar testemunhos sobre o quanto
eles consideravam esse professor. É um professor que tem um grau de
aceitação dos alunos muito acima da média.
Yahoo Notícias: Mesmo se tratando de adolescentes...
Ricardo Lísias: Exato. Ainda mais se tratando de adolescentes. Vinha aluno falando que esse professor tinha mudado sua vida. Eles faziam até meme com o rosto deles rindo com o antigo professor e deles chorando com o novo. Eu devo ter uns 100 testemunhos de aluno exaltando esse professor. Ex-aluno que dizia que entrou na faculdade por causa dele. Eu fiquei achando que havia alguma coisa muito errada nisso aí. Porque é um livro adotado por muitas outras escolas. Não é um livro polêmico. Eu tentei entrar em contato com a escola. E o que a escola me faz? Me coloca uma inspetora para me seguir no Twitter. Os alunos vieram que avisar que essa seguidora era inspetora da escola. Que queria saber do que estávamos falando. Daí eu fui falar com ela. Passei o meu e-mail e disse que queria conversar com a escola. Nunca fui respondido. Eu já tinha contato com uns 20 adolescentes e comecei a ficar irritado. Daí tive a ideia de pedir para eles anotarem em uma lista o nome de todo mundo que queria ler o livro que eu mesmo compraria para doar. Acabou que a editora a Companhia das Letras acabou doando metade e eu comprei a outra. Nessa época eu era bastante ingênuo. Como as conversas eram todas abertas eu pensei... Pô a inspetora vai ver e eles vão falar comigo quando eu for lá. Parecia o óbvio. Chego na porta da escola e as únicas pessoas que se aproximam de mim são os próprios adolescentes. Eles pegaram as duas caixas de livros que eu havia autografado com o nome de cada um. E eles foram me narrando uma série de barbaridades.
Que eles não puderam se despedir do professor. Que ele era realmente bom. Que era o único que se preocupava com eles... E depois de distribuir os livros eu fiquei parado na porta da escola e ninguém veio falar comigo. O que eu fiquei sabendo depois... Veja só. Parece um pouco aquela fábula de que a roda da bicicleta quebra e ele vai trocar a roda da bicicleta e suja a mão de graxa. Depois tenta limpar a graxa na camiseta e suja a camiseta. Depois passa a camiseta no rosto... Enfim, eles foram piorando a situação mais e mais. Depois eu descobri que a escola convocou os pais para dizer que não tinha nada a ver com o livro que estava sendo distribuído na porta da escola. O resultado disso é que o Diário do Grande ABC ficou sabendo da história. Os alunos são muito inquietos e o assunto passou a ser discutido na banca de jornal. E os alunos de outros anos passaram a querer o livro também. O professor só tinha indicado para o terceiro ano. O assunto chegou ao jornal. Um jornalista me procurou. Eu contei a história e ele foi entrevistar as pessoas da escola. E a coordenadora declarou que proibiu a leitura do livro por causa do Massacre de Suzano. Ela achou que usar um livro que tinha suicídio na capa poderia estimular o suicídio dos alunos em um momento frágil.
O meu livro foi publicado em 2012. Não tem nem a mais remota ligação com o caso de Suzano. E ela ainda declarou a esse repórter que não leu o livro. Ela impediu um livro de ser lido sem sequer ler. Existem alguns casos de proibição de livros no Brasil. Eu sou contra todos eles. Acho que isso mão pode ocorrer. Só que nos outros casos as pessoas ao menos tinham lido sabe. A pessoa olhou a capa do meu livro e achou que ele poderia estimular o suicídio. Quando é o contrário. O livro é muitas vezes adotado no setembro amarelo justamente para prevenir o suicídio. E a situação se tornou ainda mais nonsense com os alunos tirando uma quantidade gigantesca de sarro, uma inspetora me seguindo para saber o que eu escrevo... Perguntei para ele se queria mandar uma cartinha para minha mãe. Então finalmente a coordenação regional do Sesi lá no ABC me chamou para uma reunião. Eu conheço pouco o professor. Falei algumas vezes com ele no Twitter e troquei três e-mails com ele. Até porque eu achava que existia algo muito grave. Esse cara é um campeão de elogio e foi demitido? Perguntei se ele foi demitido por justa causa e ele me disse que não. Que foi demitido por incompatibilidade. Ou seja. Ele não fez nada grave. Eu fiquei chocado com a situação. Como um professor indica meu livro e perde o emprego por causa disso. Enfim, eles me chamaram para a tal reunião. Chego na reunião e encontro o coordenador regional do Sesi, a diretora da escola e o coordenador pedagógico do Sesi. Então eu notei o que realmente aconteceu.
Não sei se eles perceberam que eles criaram um conjunto autoritário ali. Eles me chamaram lá para me explicar como eu deveria encarar a situação. Eles começaram a tentar me explicar o mundo... É exatamente a raiz do autoritário. O autoritário é aquele que diz para o outro o que está acontecendo. Disse para eles com muita clareza que tenho dezenas de testemunhos que falam do brilho desse professor em sala de aula e eles não estão levando em conta a opinião dos alunos. Só que o autoritário não ouve o outro né. Os caras não ouvem ninguém. Perguntei por que a inspetora da escola estava me espionando. Eles não souberam explicar. E depois que eu disse que a solução mais assertiva seria recontratar o professor o coordenador pedagógico começou a rir e perguntou se eu era advogado do professor. Quer dizer. Pessoas autoritárias não gostam de advogados. O autoritarismo de imediato tenta suspender direitos individuais. Eu fiquei puto e fui embora. Daí eu notifiquei o Ministério Público porque essa atitude fere a Constituição é contrária ao Estatuto da Criança e Adolescente e os Direitos Humanos. A Constituição garante a pluralidade pedagógica dentro da sala de aula. O Eca garante que a criança ou o adolescente seja ouvido pelos seus interesses. E os Direitos Humanos garante a liberdade plena da troca de ideias. Também notifiquei a comissão dos Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Santo André e da Assembleia Legislativa de São Paulo. Também notifiquei a Coordenação Nacional do Sesi. Isso me preocupa muito. É uma escola né. Nesse caso específico em momento algum escorreu alguma coisa sobre esquerda ou direita. Isso me deixou mais chocado porque é um caso que foi um pouco além já que o veto não se deu sequer por razões ideológicas. Qual o próximo passo?
Yahoo Notícias: Qual a sua opinião sobre o projeto “Escola Sem Partido”?
Ricardo Lísias: Esse
movimento é uma coisa sem pé nem cabeça. É um movimento que não tem o
menor sentido já que quando qualquer pessoa faz uso da linguagem ela tem
uma manifestação ideológica. Isso em qualquer situação e em todas as
matérias. É um movimento que pretende que a escola seja apenas
representante da ideologia dos membros desse movimento. O que me parece é
que eles estão tentando trazer medo. Eu poderia ficar com medo de
denunciar essa situação. Se eu tivesse ficado com medo essas pessoas
teriam sucesso. Interessa que haja medo. Porque o medo não permite a
reação. E eles querem causar medo em um ambiente muito sensível para a
sociedade que é a escola. E isso não pode prevalecer. E ao que tudo
indica a justiça não vai permitir isso. E as vezes a gente assiste atos
de barbaridades como no caso do governador de São Paulo que tentou
censurar uma apostila por uma definição de gênero que é completamente
natural. Que é usada no mundo todo. Só que eles resolveram criar um caso
enorme para deixar todo mundo com medo. O fundamento do Escola Sem
Partido é deixar as pessoas temerosas. O professor já é uma profissão
delicada no Brasil porque sempre foi destratada. Nunca ganhou o quanto
merece... No caso do ensino de história, por exemplo, eles querem
reescrever a história. Quando se afirma que existiu tortura na ditadura
militar e que houve ditadura. Isso não é uma declaração de direita ou
esquerda. É uma declaração de um fato histórico documentado. As pessoas
querem apagar isso –e hoje a gente já sabe-- porque elas querem que a
tortura continue.
Yahoo Notícias: Qual a sua opinião sobre o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho?
Ricardo Lísias: Então...
Eu acho inúmeras coisas. Primeiro é muito fácil ficar distribuindo
impropérios em outro continente. Isso é muito confortável. É muito
cômodo. Há uns dez anos atrás alguns autores se reuniam aos sábados para
tomar café e conversar. Um escritor chegou e mostrou um artigo desse
senhor em um grande jornal. Era um texto completamente sem noção dizendo
que o Brasil estava prestes a se tornar um país comunista. E esse
escritor disse que esse tipo de ideário era muito perigoso porque
poderia se espalhar. Eu pedi para ler o artigo e achei que aquilo ali
não tinha a menor possibilidade de vingar. Foi um grande engano meu.
Agora depois da eleição eu fui ler “O Que Você Precisa Saber Para Não
Ser Um Idiota”. É um livro que não consegue nem encadear parágrafo
direito. É uma série de acusações e xingamentos. Uma pessoa como essa
atingir tal popularidade me parece ser um pouco um sintoma de nossa
miséria. Eu tenho a impressão que se fosse mais fácil ter acesso a
filosofia dez anos atrás... Não é como na França que você chega e uma
banca e tem oito revistas de filosofia. Ele preencheu um pouco esse
buraco. Não com filosofia porque ele não consegue sequer concatenar
argumentos. Aquilo ali não é um pensamento ordenado. Ele encarna também
um pouco dessa tendência da vulgaridade que tomou conta da sociedade
brasileira. Vi dois ou quatro vídeos dele nos últimos tempos e ele fala
muito palavrão né. Tem uma fixação anal muito grande. Ele se apropria um
pouco também do moralismo brasileiro.
Yahoo Notícias:
Uma das últimas polêmicas do governo envolveu um dos grandes nomes das
artes brasileiras. O presidente Jair Bolsonaro deu a entender que não
iria assinar o diploma do Prêmio Camões –o maior em língua portuguesa.
Como enxerga isso?
Ricardo Lísias: Olha...
O Chico Buarque não precisa disso. Ele está em outra dimensão. Essa foi
mais uma demonstração de orgulho da própria ignorância. Eles têm
orgulho da própria ignorância. O Chico não precisa disso. Você colocaria
a assinatura do Bolsonaro na sala? Se ele assinasse iria estragar o
diploma. Melhor não ter assinado mesmo.
Yahoo Notícias:
Ainda sobre o prêmio Camões. O escritor Raduan Nassar que concebeu
algumas das maiores obras da literatura brasileira no último século
protagonizou polêmica ao criticar duramente o impeachment da presidente
Dilma e o governo do presidente Michel Temer. Ele criou uma saia justa
na entrega do prêmio e acabou sendo muito criticado por algumas pessoas.
Esse caso marcou uma escalada desses ataques recentes a cultura?
Ricardo Lísias: Não resta dúvida. A sociedade brasileira sempre teve muita dificuldade com a transgressão. E muitas vertentes da literatura são transgressoras. Os livros do Raduan Nassar são transgressores não só em relação a linguagem, mas em todas as ordens possíveis. Enquanto havia ainda um certo nível de civilidade. Uma civilidade precária sendo resguardada pelos governantes... Nem os generais tinham coragem de falar o que o Bolsonaro fala. O discurso da ONU foi um completo desvario intelectual. É um amontoado de absurdos que ele foi lá e falou tranquilamente. E depois ainda defendeu. Você veja a Fernanda Montenegro, por exemplo, que vem sendo agredida recentemente por um desses representantes do obscurantismo. Eu tenho bastante experiência em participar de eventos literários. E nesses eventos tinha sempre um autor obscuro que levantava a mão e na parte da fala dele ele falava algo como “para mim esse Graciliano Ramos não é tudo isso não” ou “esse Guimarães Rosa não presta”. A Fernanda Montenegro é para as artes cénicas o que o Graciliano Ramos é para a literatura. Isso é um ponto pacificado. Sempre tinha esse cara. O problema é que esse cara agora virou ministro. Ou assessor de ministro. O maluquete de palestra virou ministro. Antes quando alguém falava esse tipo de bobagem a plateia ficava sem graça. Você sentia vergonha alheia... Agora o cara que fala isso vira diretor da Funarte. Esse é o nosso atual estado. Deram o poder para os caras que nunca conseguiram sobressair por absolutamente nada e ficavam ressentidos por isso. E eles inventam que não se sobressaem porque não são de esquerda. E isso é mentira. Eu de cabeça consigo lembrar de oito ou dez que se destacaram. Inclusive na literatura contemporânea. É argumento de gente sem talento mesmo.
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